Sobre a morte

Esta talvez seja a pior altura de sempre para falar sobre a morte. Mas também por isso é a mais importante. Desde o Covid que a morte nos entra pelas casas a dentro com os telejornais. É mais importante do que nunca dar-lhe sentido.

No ocidente, ela é persona non-grata. É o grande inimigo. A derradeira fronteira a conquistar. Num mundo obcecado pela expansão e estabilidade, o fim de ciclo e a grande mudança não podiam ser vistos de outra forma.

Mas, por muito que as rugas sejam disfarçadas com botox e os idosos encarcerados em lares, a morte recusa-se a ir embora. Continua cá. Continua a acompanhar-nos a cada passo da vida. Companheira tão fiel como o bater do coração ou a respiração.  A grande inimiga, mas também a grande certeza.

Ps. Se preferes textos mais pequenos, podes saltar logo para onde diz Olhar a morte de frente. É onde estão as conclusões.

O regresso da morte

A morte fez o seu grande regresso à consciência ocidental com o Covid. Os números dramáticos dos mortos. Os resultados mais dramáticos de escolher ser ou não ser vacinado. O tirar do véu ao estado moribundo dos nossos hospitais. Tudo isso levou a um acordar. A morte estava à porta. E tudo podia ser sacrificado para a manter à distância: a liberdade, a autonomia corporal, o livre arbitro.

Quando a onda do Covid baixou, duas novas se levantaram: a guerra na Russia/Ucrânia e o estado miserável do SNS.

A primeira mostrou-nos que a violência não estava tão distante da Europa como pensávamos. O eclodir dessa guerra matou um ideal de um mundo de paz (e sabemos que para o ocidente o “mundo” é composto da Europa, América do Norte e pouco mais) e uma possível escalada do conflito colocou-nos a todos a pensar no futuro. Outra vítima foi a ideia da hegemonia Americana. De repente, os donos do mundo já não mandavam assim tanto — notou-se na ineficácia dos embargos e no negociar de petróleo em moedas para além do dólar.

A segunda toca-nos mais perto. O colapso do SNS é evidente. E sem ele, lá se vai o nosso maior baluarte de proteção contra a morte: o acesso a cuidados médicos. O stress que o Covid trouxe ao SNS foi um primeiro abalo. Depois vieram todos os casos que não sendo acompanhados na época do Covid necessitaram de cuidados dobrados após o mesmo. E como pano de fundo, temos a estratégia de desmantelamento ativo do SNS, que teria levado o sistema para o colapso, independentemente de haver ou não pandemia.

Muitos temos familiares e amigos à espera de uma operação vital durante tempos sem fim — uma das minhas amigas está a viver há meses com um cateter a ligar o rim à bexiga porque não há vagas para operação. Outra está há anos à espera de uma operação à coluna. E tantos outros casos. Torna-se assustador. Quantos não ficam pelo caminho por falta de cuidados? E se me acontece a mim ou aos meus? Como pagar a um médico privado, quando o preço da casa, combustíveis e comida duplicou, disparou? Sem a muralha hospitalar, o grande inimigo ganha terreno e fica bem mais visível.

Mais recentemente, a morte tem estado nas bocas do mundo devido à barbárie que está a acontecer entre Palestina e Israel. O preço de sangue pelos 1.400 Israelitas mortos no ataque inicial já ultrapassa os 8.000 Palestinianos. Ambos os lados se odeiam. Ambos vêm o outro como sub-humanos.

Falar sobre a guerra já não é falar de um ou outro tanque destruído. De uma mão cheia de soldados mortos de lado a lado. De repente, a conversa é sobre os milhares de civis — homens, mulheres, crianças — que são cilindrados pela máquina de guerra. E isso torna particularmente assustadoras as linhas, cada vez mais claras, que desde a guerra da Rússia/Ucrânia dividem o mundo em dois.

Olhando mais longe para o futuro, a morte está à espreita nas alterações climáticas. As cheias este ano foram das mais mortais — lembram-se da Líbia? E as secas estão-nos a deixar cada vez mais perto de virarmos deserto. Para quem não sabe, os números da fome no mundo têm aumentado todos os anos desde 2014 (quem diria, chegámos aos 4 cavaleiros! Inesperado, mas pouco surpreendente)

Indo para além da esfera humana, está em curso um colapso da biodiversidade, a 5ª extinção em massa. Ela mostra-nos que não somos só nós que temos que contar os dias. Quem estudou um bocadinho de biologia sabe que animais altamente complexos — como nós — só sobrevivem quando há toda uma rede de vida para os sustentar.

Olhar a morte de frente

A morte não estava desaparecida, nem sequer adormecida. Estava simplesmente em silêncio. A ver-nos marchar alegremente na sua direção. Se desviarmos os olhos, vamos bater-lhe de frente. Se os levantarmos, descobrimos que ela caminha, desde o primeiro dia, ao nosso lado.

Nos últimos anos a morte tem tido um papel muito maior na minha vida. Primeiro, foi a filha de uma amiga que vi partir. Que me veio acordar para uma facto que sabia apenas na teoria: a vida não é para sempre. Depois, foram as duas avós, perdidas com poucos meses de intervalo. Uma, que viveu tranquila até às ultimas semanas. Outra, mantida viva à força de medicamentos, amarrada a uma cama, alimentada por uma sonda.

E cada morte teve um impacto em mim: recordou-me que estou vivo. Que ainda estou vivo, mesmo que com um prazo.

A morte, vim a descobrir, é a melhor conselheira. Mostra-me o que é importante e o que não vale a pena. Mostra-me quais as escolhas que fazem sentido. Mostra-me onde quero gastar o meu tempo.

Sem a morte, num mundo onde o tempo é eterno, onde podemos sempre deixar para amanhã, fica-se sem sentido. A perda desse limite deixa-nos tão desorientados como se, de repente, nos tirassem o chão. E isso vê-se no mundo. Vê-se nos olhos vazios de quem conta os dias passar, todos iguais. Na sociedade que se revolta contra coisas inconsequentes, deixando de lado tudo o que importa. Vê-se no consumismo que procura encher o vazio criado por uma vida sem sentido. Sem a morte, a vida não passa de um fantasma de si mesma.

Em vez de deixares que o terror pela morte — hoje em dia, tão presente — te cegue, deixa que a consciência dela te ilumine. Que ela mostre o próximo passo que realmente vale a pena no teu caminho.

A morte não é boa nem é má — embora existam sem dúvida formas melhores e piores de morrer e de viver — ela simplesmente É. E, nessa certeza, sabes que também tu És. Pelo menos enquanto estiveres vivo.

1 thought on “Sobre a morte

  1. Maria de Fátima dos Santos Diogo

    Gostei muito desta reflexão cindentifico-me muito com tudo o referes nela. Gratidão por a teres partilhado connosco.

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