Nesta série de posts, vamos falar de uma série de rotinas ancestrais que nos levam de regresso à Natureza. Nasceram de uma busca da resposta à pergunta “como é que certas culturas mantêm viva a conexão à natureza de uma geração para a outra?”. Se quiseres saber mais sobre este tópico, e ver todos os posts da série, clica aqui
Amigos invisíveis
Dos momentos mais marcantes que tive na minha jornada de conexão, foi quando voltei dos Estados Unidos em Dezembro. Lá, a floresta está tão viva que é difícil descrever em palavras. Há musgo a crescer pelas árvores acima, e por entre elas vivem ursos, onças e veados. Há pássaros que nos seguem. Há cepos de árvores centenários, que servem de berço à nova floresta. Há imensos arbustos de bagas. E o solo é profundo, fresco. Cheio de matéria orgânica, com um cheiro a vida impressionante.
Quando voltei para cá, a falta de vida no pinhal/eucaliptal que rodeia a minha casa chocou-me. Mexeu comigo, fez-me perguntar porquê. Porquê de termos dado cabo de tudo para ficarmos com algo tão pobre em troca?
Perturbou-me o estado de destruição a que tínhamos chegado e o quão “normal” ele era.
E estava eu a andar pelo pinhal, envolto nestes pensamentos, quando me deparo com uma pegada estranha no chão. Não era como as de cães nem dos gatos. Além de ter cinco dedos, tinha garras demasiado grandes. Era como uma pegada de urso, mas pequena.
Ver aquela pegada atirou-me para fora da espiral mental em que estava. Afinal ainda havia vida no pinhal. Escondida, discreta, mas lá. Não era que o pinhal fosse totalmente desprovido de vida, eu é que antes não tinha olhos para a ver.
Na natureza à nossa volta, os mamíferos aprenderam a esconder-se. Tiveram que o fazer. Mas se souberes onde procurar as suas pegadas e como as interpretar, podes descobrir que temos amigos invisíveis mesmo ao nosso lado.
Ir para além das aparências
Ler pegadas e sinais é muito parecido com ser detetive. Temos que pegar em pistas e com elas criar uma história, perceber o que se passou. Para isto, há dois passos principais:
- Ir para o local do acontecimento
- Fazer as perguntas certas
Se souberes fazer isto, vais começar a descobrir por onde andam os amigos invisíveis em teu redor.
Ir para o local do acontecimento
O primeiro passo é encontrar umas pegadas, ou outros sinais de animais. Para teres mais probabilidades de as encontrar tens que ter em conta:
Substrato (chão) — Para as pegadas, queres ter um sítio com o chão mole e, se possível, protegido da erosão. Os meus sítios preferidos são debaixo de pontes. Lá a chuva não chega e a água do rio que desce e sobre vai renovando a lama por onde os animais passam. Também depois das chuvas, quando tudo está enlameado é uma excelente altura para encontrar pegadas. E a praia, ou caminhos com areia também são bons sítios.
Interesse para o animal — Água, comida, companhia, abrigo. Os animais têm necessidades parecidas com as nossas. Precisam de chegar desde onde vivem a sítios onde haja comida e água. É mais fácil encontrar pegadas e outros sinais deles nos sítios onde têm os recursos de que precisam para viver.
Comportamentos específicos — As raposas gostam de deixar cocós nos meio dos caminhos. Os veados raspam a casca das árvores com as suas hastes. As corujas regurgitam os pelos e ossos dos animais que comem. Quando começas a conhecer um animal, começas também a conhecer os seus comportamentos. E começas a ficar com um olho atento para os sítio onde esperas encontrar sinais deles.
Fazer as perguntas certas.
Ok, encontraste a tua pegada ou outro sinal do animal. E agora?
Agora, é o momento de fazer as perguntas que te ajudem a montar uma história com base no que estás a ver. Para isso, as perguntas são fundamentais. Estas são as perguntas base que queres fazer:
Quem? — É grande ou pequeno? Leve ou pesado? Anda com quatro patas ou com duas? Era só um ou muitos? Conseguimos ter uma boa ideia de quem deixa as pegadas e sinais nos sítios por onde andamos. Mesmo sem saber o animal específico, dá para criar uma ideia da sua forma. E quando estiveres pronto, podes levar esta busca mais longe e com o auxilio de um guia de campo (ou da internet) descobrir exatamente quem foi que deixou aquela pegada.
O que? — O que é que este animal estava a fazer? Para onde ia? De onde vinha? Depressa ou devagar? Será que há comida cá perto? Ou algum predador? O que se passou aqui?
Quando? — Ontem? Hoje? Será que há gotas de chuva na lama, mas a pegada está lisa? A forma dela é bem definida, ou já começou a ser levada pelo vento? Quando é que o animal aqui passou? Será que ainda o consigo encontrar, ou que já foi à demasiado tempo? A que horas é que ele costuma andar por cá, para lhe fazer uma espera? Onde é que ele estará agora?
Onde? — Como é o espaço envolvente? Porque é que o animal passou por aqui? Como é que este sítio se enquadra no espaço maior?
Porquê? — Porque é que o animal estava aqui? Porque é que ele passou neste sítio, àquela hora? Porque é que se estava a mexer tão depressa ou tão devagar?
Como? — Como é que ele fez esta marca? Qual foi o comportamento? Esta pergunta pode não ser tão interessante para pegadas, mas para arranhadelas, raspadelas, ou outros sinais torna-se fundamental.
Com estas perguntas, um conjunto de marcas aleatórias no chão passam a ser uma história. O pequeno urso era um texugo, que saia da sua toca do monte ao raiar do dia, para descer até às zonas húmidas junto do rio a ver se encontrava algum petisco. E quando conhecemos essas histórias, o mundo enche-se de vida. E nós fazemos amigos com o invisível
Seguir pistas para lá da floresta
O tipo de pensamento que se cria quando seguimos pistas pode ser levado para lá das poças de lama, dos caminhos do pinhal. Esta curiosidade, estas perguntas podem ser levados para dentro. Para os nossos comportamentos. Para os nossos relacionamentos.
A arte de criar histórias com base no que vemos pode permitir-nos ir muito mais fundo na nossa relação com o outro e com o nosso interior. Se eu fizer as seis perguntas a mim mesmo quando tenho um ataque de raiva, ou quando tenho a mesma discussão pela milésima vez com a minha companheira, talvez algo novo venha ao de cima. Talvez aquela pegada se converta numa história e essa história se mova para um novo episódio.