A espiritualidade desde os seus primórdios que tem duas faces. Uma superficial, cheia de cores brilhantes e grandes promessas, cheia de respostas e certezas. E outra profunda, onde há tons mais escuros e variados, onde há mais perguntas do que respostas. Esta dualidade é um mecanismo de segurança, que dá a cada um acesso ao tipo de lições que pode receber e que afasta os imaturos do conhecimento perigoso.
Não significa que a primeira fase — nalguns sítios chamada de glamour, na minha cabeça chamo-lhe kumbaya — não seja extremamente útil e válida. Tal como o que ensinas a alguém na primária e na universidade, ou a um canalizador e um agricultor é diferente, também as diferentes lições têm o seu lugar. O Kumbaya serve muitas vezes para abrir a porta para a vida espiritual, ou para dar algumas lições a quem, pelas circunstâncias da vida, não se pode dedicar ao espírito.
Ensinamentos a vários níveis
Nos clássicos da espiritualidade tens muitas vezes os dois níveis presentes no mesmo texto. Se fores ler a Bíblia tanto encontras um caminho mais superficial, onde te dizem “porta-te bem se não vais para o inferno”, como tens as chaves para uma vida espiritual extremamente profunda.
Se fores aos sutras da tradição do Yoga, encontras o conhecimento destilado a um nível tal que consegues ter verdadeiros calhamaços reduzidos a um par de frases. E apenas quem dedica o tempo necessário às mesmas consegue chegar aos seus significados mais profundos.
Nos mitos clássicos, tens as quatro visões: histórica, metafórica, psicológica e arquetipal, que te vão ensinar diferentes coisas de acordo com o teu nível de compreensão.
Já na alquimia, eles preferiram usar jargão técnico de tal modo complexo que só quem estava dentro da tradição era capaz de compreender os seus textos. Chegavam a armadilhar os textos, com instruções explosivamente perigosas para afastar os curiosos.
Este tipo de mecanismos de segurança, com ensinamentos a vários níveis, quando funciona, deixa as pessoas convencidas de que acederam a uma grande e profunda verdade, quando ainda não passaram da superfície.
A espiritualidade de massas é superficial
O problema acontece quando quem quer ir mais fundo não encontra nada, porque todos os canais de comunicação estão sufocados por estas mensagens superficiais. Ou quando esta visão superficial está tão normalizada que as pessoas nem sabem que se pode ir mais fundo.
Hoje em dia, vemos isso a acontecer num nível incomparável. Como tudo o resto no sistema capitalista, a validade da espiritualidade é medida pelo volume de vendas. E para vender, quanto mais kumbaya, melhor. A espiritualidade mais profunda é sempre mais individual e por isso menos vendável.
Se queres um caminho que te leve a algum lado, tens que ir além dos Kumbayas da espiritualidade. O primeiro passo para isso é esta compreensão de que há algo mais fundo, que não pode ser passado em palavras e que tem que ser experienciado.
Mas estas questões dos kumbayas têm um segundo nível de complexidade. Nas sociedades e contextos onde há estas ferramentas de segurança, havia um pressuposto, que ias ser acompanhado por um professor, ou manter-te no caminho tempo suficiente para ires para lá do glamour.
Hoje em dia, a espiritualidade através da internet, entregue num conveniente formato de frases feitas com fundos bonitos no instagram, não podia estar mais longe desse contexto original. E acaba por haver um bando de papagaios encandeados que repetem uma e outra vez essas frases feitas, tão repetidas e tão pouco percebidas. E aquilo que era um mecanismo de segurança que eventualmente era ultrapassado, torna-se em vez disso uma armadilha onde facilmente se fica prisioneiro. Torna-se mais uma camada de ilusão que te afasta do real em vez de te aproximar.
As três formas de ir mais fundo
Temos duas soluções com jeito, e uma solução rápida e cheia de buracos. As soluções com jeito já falei delas: encontrar um professor, ou seguir uma linhagem tempo suficiente para ires para além do glamour inicial. E quando falo de linhagem estamos a falar de alguma coisa com no mínimo umas centenas, mas de preferência uns milhares de anos. E estamos a falar de ler os textos atuais dessa linhagem, mas também as fontes primárias. Os textos sagrados em que elas se baseiam.
A solução com buracos é o que vou fazer com este conjunto de escritos. É apontar para alguns lugares comuns da espiritualidade, das frases feitas mais repetidas e explicar-te porque é que são tanga. Mas assim vais estar a revelar os mistérios! Dizem alguns, com receio de que o conhecimento chegue às mãos erradas. Nada disso. Só é mistério para quem tem menos do que meio neurónio, e esses não conseguem ler mais do que uma frase de cada vez. Estamos seguros, a informação só vai chegar a quem realmente tem capacidade de a compreender.
Falando em compreensão, para a semana vamos falar de um dos Kumbayas favoritos da espiritualidade moderna, e perceber de que forma ele nos engana. O Kumbaya a ser trabalhado é o “A Mente, mente.”