Práticas Espirituais

A Laura veio do ginásio. Está contente: tem um novo record pessoal nos agachamentos: já consegue agachar o seu próprio peso!  Bem se lembra no início, o tempo que passou com o PT a corrigir a forma, só com um cabo de vassoura porque não tinha força para mais.

Hoje, já não lhe doem os joelhos e também consegue pegar na filhota ao colo com muito mais facilidade. É verdade que nunca teve que se agachar com 60 kg nos ombros fora do ginásio, mas ser capaz de o fazer trouxe-lhe imensas vantagens noutras áreas da vida.

Chegando a casa, está na altura da segunda parte da rotina de auto-cuidado dela: vai sentar-se a meditar durante 30 minutos. E é aí que lhe bate a revelação: E se a meditação for como os agachamentos, e o que ela está a aprender na verdade vai muito para além de ser capaz de ter a mente parada?

*

Aprendizagens obliquas

Há práticas que aparecem uma e outra vez na espiritualidade. Com nomes e roupagens mais ou menos diferentes, acontece frequentemente que o mesmo tipo de exercício aparecem em tradições completamente distintas. Mas antes de entrarmos neles, temos de falar de aprendizagens obliquas.

É delas que fala a história de abertura. Às vezes e, no caso da espiritualidade, muitas vezes, aquilo que achamos que estamos a fazer e o que está a ser trabalhado na realidade são duas coisas distintas. Quando a minha avó insistia que eu arrumasse o quarto, o objetivo dela não era que eu fosse um especialista em arrumação de quartos. Ela estava a usar essa tarefa como uma ferramenta para me ensinar sobre brio, arrumação e uma certa forma de estar na vida.

Com as práticas espirituais passa-se o mesmo. O que achamos que está a ser trabalhado nem sempre condiz com os resultados que obtemos. E tem que ser assim.

Por dois motivos — primeiro há coisas que são impossíveis de desenvolver diretamente. A Laura sabe que o quer ficar mais forte. Para isso é indiferente se levanta alteres, usa elásticos, ou o próprio peso do corpo, ela vai ter sempre que usar uma ferramenta para ter resultados.

E o segundo motivo prende-se com a forma como o ego (e aqui uso a palavra no sentido da parte de nós que está encarregada da nossa sobrevivência) funciona. Por norma, somos resistentes à mudança. A forma como funcionamos hoje claramente resulta (estamos vivos, não é?) e qualquer alteração de fundo pode ser uma ameaça a essa sobrevivência. Por isso, o ego vai-se proteger e criar distrações e diversões quando vê mudanças grandes a caminho. E o trabalho espiritual, quando funciona, tráz inevitavelmente mudanças.

E para isso, usam-se práticas que distraem o ego, enquanto o trabalho importante é feito. Um bocadinho como se conta uma história, ou se finge que a colher é um avião para a criança comer.

Práticas da espiritualidade

Introdução feita, vamos então falar das práticas:

Meditação: Isto é, alinhamento da atenção com a vontade. A meditação não é só estar parado a olhar para os pensamentos. Isso é um tipo de meditação. Podemos meditar com uma absorção total nos sentidos. Podemos manter o foco em símbolos sagrados, ou de muitas outras formas. O que elas têm em comum é que colocamos a atenção ao serviço da vontade, em vez de estar dispersa pelos mil estímulos que há em seu redor.

Trabalho simbólico: Se eu disser “cadeira” consegues criar uma imagem na tua mente, certo? Isso só acontece porque sabes o que a palavra significa. Na espiritualidade, as coisas funcionam um bocadinho ao contrário. Utilizam-se símbolos para chegar significados anteriormente desconhecidos. Eles podem tomar a forma de histórias (mitos) ou imagens, e a forma tradicional de os abordar é colocando a atenção indivisa sobre eles, atingindo assim novas camadas de significado.

Valores/Conduta: Aqui a linha entre a religião e a espiritualidade fica muito ténue. A diferença de base vem de que os valores são assumidos não porque um Deus assim o disse, mas porque sabemos que nos levam na direção de algo. Por exemplo, no Yoga os Yamas e Niyamas (o equivalente aos 10 mandamentos dessa tradições) são usados porque se assume ajudarem no trabalho de aquietar a mente. Na magia, há valores muito fortes a nível de ética porque sabemos que todo o mal que seja feito regressa a quem o pôs no mundo (porque é que acham que as bruxas no sentido pejorativo vivem sempre em cabanas miseráveis, são azedas e má companhia?)

Limpeza e proteção energética: Também se podia dizer harmonização. O objetivo é sempre criar harmonia com o divino, e repelir assim influências externas que nos impeçam de ir nesse caminho. Na magia há práticas como a esfera de proteção. No trabalho de conexão à natureza, sinto efeitos similares numa prática de gratidão que recebi, o Thanksgiving Adress. E há mantras e orações com exatamente o mesmo propósito e efeito.

Ritual:  O ritual tem um papel muito importante, criando espaços (em nosso redor, mas principalmente na nossa consciência) onde é mais fácil entrar em comunhão com o Divino.

Trabalho Energético: Pro fim, há frequentemente uma componente de trabalho energético, de amadurecimento do nosso corpo feito de energia vital. Por norma tem algo a ver com colocar símbolos específicos em certas partes do corpo. Das várias partes do trabalho, este é aquele com que mais facilmente se cometem erros com consequências sérias.

Como criar a tua própria prática?

Então, agora que já tens os elementos, vamos criar uma prática básica, certo?

Não, nada mais longe do que queremos.

Imagina, por um momento que estas coisas funcionam mesmo. Vais estar a trabalhar com energias intensas, divindades, símbolos que abrem portas a novas áreas da tua consciência, já para não falar de todas as coisas que não tens a noção de estarem a ser trabalhadas.

A não ser que percebas muito do assunto — e isto significa no mínimo dos mínimos um sistema vivido de uma ponta à outra — estar a inventar é boa forma de dar asneira.

No yoga avisam sempre sobre os problemas (incluindo morte) que podem surgir de uma prática de ativação da kundalini que não seja feita da forma devida. Nas artes marciais asiáticas (que trabalham muito à séria o corpo energético) avisam uma e outra vez para não misturar linhagens. Em ambos os casos estas advertências prendem-se única e exclusivamente com a vontade que os mestres têm de manter vivos os seus discípulos.

Uma boa metáfora é pensar na química. Se de repente tivesses acesso a um mega laboratório, cheio de coisas giras, pós coloridos e líquidos brilhantes para misturar, podias fácilmente fazer asneira. Um bom primeiro passo seria seguir um ou dois manuais com experiências, para que, quando já percebesses alguma coisa do assunto então aí sim, pudesses seguir pelos teus próprios meios.

Próximos passos

Mas para quê toda esta exposição então?

Há um propósito muito simples — para que possas olhar para a tua própria prática e perceber o quão completa ela está.

Esta lista não é exaustiva. Há tradições que trabalham com mais elementos, ou que não trabalham com todos. Mas assim tens uma ideia sobre as categorias em que se encaixam as coisas que aprendes como práticas do teu caminho.

Além disso, assim vais ser menos vítima do deslumbramento. Quando o professor do retiro de fim de semana a que vais te falar da verdadeira história da origem do universo, vais ser capaz de perceber que é só um conjunto de símbolos e usa-los para o que é suposto.

Vais saber que a mais recente via para realizar todo o teu potencial humano-divino, alcançar a vida eterna, acabar com o sofrimento e toda a lenga-lenga do costume não passa de mais um caminho de desenvolvimento espiritual. Feito mais ou menos dos mesmos blocos de todos os outros e que, se tiver alguma qualidade (uma boa métrica é há quantos séculos existe), vai sem dúvida levar-te a sítios interessantes.

E sem estar deslumbrado, não te vais deixar convencer que aquele é o único caminho, superior a todos os outros. E se assim for, é mais fácil manter o sentido crítico a funcionar, escolher um caminho que realmente se adeque a ti e não desperdiçar tempo em caças de gambuzinos vendidas com promessas brilhantes.

E é destes caminhos que vamos falar no próximo post. Se tudo correr bem, vais ficar a saber melhor como escolher o teu. É esse o próximo passo.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *