Escolher um caminho espiritual

O João quer subir a montanha. Lá em cima, o pico está coberto de nuvens, e ele não sabe se existe mesmo, se é tão bonito como dizem. Mas já ouviu falar de malta que chegou lá acima. E dizem que não há nada que se compare.

Chegou à base da montanha e, de repente, é o caos. Há dezenas, talvez centenas de guias, cada um a apregoar o seu caminho. Uns dizem que o seu é o mais rápido. Outros que é o mais fácil. Alguns dizem que os outros guias estão todos errados, e que só o caminho deles é que funciona.

E também há alguns turistas. O João decide dirigir-se a um para ver se tem algumas luzes. Escolhe uma senhora, de meia idade, cabelo escuro. E pergunta-lhe como está a correr a subida. E ela fala de quão maravilho está a ser. Ontem esteve dois dias com o guia de chapéu de penas. Antes disso foi uma semana com outro guia que veste um robe. E ela continua a falar de como andou para cá e para lá, de como tudo foi maravilhoso e transformador. E aí, o João pergunta-lhe, afinal quão alto é que ela chegou? E ela fica corada e vai embora.

Então, o João decide ir falar com os guias. Há uns mais barulhentos. Falam das maravilhas que há no topo da montanha. Usam cores garridas e estão cheios de energia. Mas, desilusão das desilusões! Ao falar com eles, o João apercebe-se que eles na verdade também não sabem o caminho até ao topo. Sim, já andaram qualquer coisa. Uns seguiram mapas velhos, outros as palavras de alguém que subiu, mas apesar do seu entusiasmo, nunca foram até lá a cima. Mas garantem-lhe que vale muito a pena, e que se for com eles, sem dúvida vai chegar ao topo.

O João decide abandonar, e vai-se sentar, cansado no restaurante da base. É aí que encontra um outro grupo. Roupas mais simples (pelo menos alguns deles), uma certa tranquilidade. E o João expõe-lhes o seu dilema. Eles ouvem-no com paciência. Perguntam-lhe o que é que ele quer? As vistas mais bonitas, ou o caminho mais rápido? Será que gosta mais de um caminho desafiante? Que preparação é que já fez? Será que subir a montanha é mesmo o que ele quer?

E, depois de o perceberem (e de o João perceber melhor o que quer), olham uns para os outros e um deles levanta-se.

— Anda. — Diz ele. — Vou-te ensinar a escalar.

E ele ensina. Dá-lhe as técnicas. E mostra-lhe o caminho e vai com ele até ao sítio onde as nuvens começam. E nessa altura, o João já está confiante. Já caiu e se levantou vezes suficientes. Sabe escalar e como encontrar o caminho certo. E o guia diz-lhe:

— Daqui para a frente, o caminho tens que ser tu a fazer sozinho. Mas, toma, este é o mun número. Se precisares de alguma coisa, liga.

— E vou chegar até ao cimo? — Pergunta o João

O guia ri-se, e diz

— Isso não sei, mas enquanto tiveres vontade, vai haver montanha para escalares.


Uma montanha para subir

Há muitos caminhos espirituais. Muitos. Mesmo muitos! E, para grande alegria da malta com capacidade de se decidir por um e grande confusão de todos os outros, muitos deles até funcionam.

É uma espécie de armadilha, o excesso de escolha. Por um lado é bom, há variedade, que de certeza que lá pelo meio encontras o caminho que é perfeito para ti.

Mas por outro lado, é fácil cair no dilema do príncipe encantado. Achamos que o próximo é que vai ser bom, e não estamos tempo suficiente comprometidos com aquele para as coisas realmente funcionarem.

Porque essa é uma questão dos caminhos espirituais. Eles pedem compromisso, foco, horas de trabalho. Eles vão à profundidade, a partes de nós que estão abaixo da consciência e que se movem lentamente como os continentes.

E sim, há um momento para ir experimentar. Entrar num caminho espiritual é um bocadinho como entrar num relacionamento. Se nunca experimentamos mais nada, fica difícil saber se o que temos é bom ou não. Faltam-nos pontos de referência. Há uma capacidade de discernimento que vem dessa experiência, desse experimentar desinteressado, só para ver como é.

Mas depois, depois dessa exploração (que é bem gira) há a outra parte. Do compromisso, da entrega, de fazer um caminho juntos. Que romântico não é?

Então, já que estamos a comparar o caminho espiritual com uma relação, vamos lá olhar para bandeiras vermelhas, que nos avisam logo que é para abandonar.

Bandeiras vermelhas

  • Os defensores do caminho estão convencidos que tens que largar uma parte de ti para realmente cumprires o teu potencial

 Não estamos a falar de um mau hábito, ou daquele trauma de infância que ainda hoje te assombra. Não, estamos a falar de coisas maiores. Costumo chamar a isto a teoria da amputação humana: que se cortares um bocado de quem és aí é que vais realmente ser tudo o que devias ser.

  • Para o cristianismo esta parte era o Corpo, que estava cheio de pecado e a Mente, porque os padres eram quem pensava.
  • Para o racionalismo eram as Emoções, que elas só atrapalham e o Espírito, que se nunca ninguém viu, não deve interessar.
  • Para a espiritualidade Kumbya que há por aí a potes, é a Mente, porque ela mente-nos, e basta sentir para chegar à verdade da vida.

Acho que olhando assim para elas umas ao lado das outras fica claro porque é sempre uma ideia parva. Somos seres humanos, temos espírito, mente, emoções e corpo, tentar deixar uma de lado é meio caminho andado para dar asneira.

O não pensar, que é o que está mais na moda hoje em dia é particularmente grave. As tuas escolhas a nível espiritual tanto te podem levar a sítios interessantes, como para um buraco. Cabe-te só a ti a responsabilidade pelas escolhas que fazes, e para isso é importante usar o teu sentido crítico

  • A pessoa que a prega está toda descompensada.

Já na bíblia dizia, que pelos frutos se conhece a árvore. Se o caminho for bom, vai fazer bem. Quando em vez disso a pessoa fica cada vez mais destabilizada, quando em vez de crescer regride, então alguma coisa está mal.

Por vezes nem é o caminho em si, é só a forma como aquela pessoa o escolheu percorrer. Mas, seja como for, fica claro que por ali não é o caminho a seguir. É claro que a espiritualidade vai mexer com os teus valores, com o tipo de pessoas com quem te dás. Mas esse caminho vai-te levar a uma maior paz interna, a uma maior aceitação do outro.

  • Pede que te isoles

Se não tiveres amigos para te dizer “Laura, mas que raio andas a fazer com a tua vida?” fica mais fácil levar-te para um buraco imenso. Fica mais fácil que te convenças que sim, essa barbaridade que estás a fazer é normal, porque a malta toda com quem te dás pertence ao culto.

E, mais uma vez, bom senso. Uma coisa é um retiro porque faz bem fazer um detox da nossa sociedade. Outra coisa totalmente diferente é tentarem convencer-te que todas as tuas anteriores relações são tóxicas, e que agora que estás no caminho do bem tens que a deixar para trás.

  • É a dona absoluta da verdade

Esta atitude é da religião. E das pouco tolerantes. Na espiritualidade não é suposto acontecer. A malta que leva o trabalho a sério sabe que o que seguem é apenas um caminho, e que há outros caminhos que fazem mais sentido para outras pessoas.

É tão absurdo como eu dizer que a única forma certa de fazer bacalhau-à-brás é como a minha avó me ensinou. Eu posso tê-la como preferida, mas isso não torna as outras formas menos válidas.

  • Está atrás do teu dinheiro.

Quem vive da espiritualidade — e hoje em dia é coisa que dá para fazer — tem que comer comida e pagar contas como os outros. Já para não falar que pôr um preço nos ensinamentos leva a que sejam levados mais a sério pela maior parte da malta.

Mas se a tua escola está a um passo de ser um esquema em pirâmide. Se cada curso que faças para te levar mais perto do altíssimo te leva também mais perto da falência. Se o teu mestre espiritual tem necessidade do seu terceiro Porshe e pede o teu humilde donativo. Então talvez o foco da escola já não seja a espiritualidade, por muito que tenha começado assim, e que até tenha ensinamentos válidos.

Sabendo o que evitar já estás mais bem preparada do que a maioria das pessoas. Parabéns! Para a semana vamos falar do que procurar, para que te possas decidir para onde vais.

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